'O Brasil foi um dos alvos mais injustiçados', diz professor da USP sobre novas tarifas dos EUA
Medida afeta exportações estratégicas e expõe pressão geopolítica dos EUA para reaproximação com o Ocidente.
Feliciano Guimarães, do Instituto de Relações Internacionais, analisa os efeitos da decisão do governo norte-americano. (Foto: Reprodução)
O governo dos Estados Unidos confirmou a imposição de tarifas sobre uma série de produtos brasileiros e de outros países a partir de 7 de agosto. A medida, assinada pelo presidente Donald Trump, surpreendeu ao manter isenções parciais para alguns setores, mas ainda assim deve provocar impactos significativos na balança comercial brasileira. Os efeitos da decisão e seus desdobramentos geopolíticos são analisados pelos professores Feliciano Guimarães, do Instituto de Relações Internacionais, e Paulo Feldmann, da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária, ambos da USP.
“A tendência nos Estados Unidos é ser cada vez mais protecionista, cada vez mais utilizar as tarifas como ficha de barganha e proteção da sua economia”, explica Feliciano Guimarães. Na ordem executiva publicada quinta-feira (31/8), o presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, anuncia uma nova data para as tarifas entrarem em vigor, além de exceções para produtos específicos. “Essas exceções que a gente viu tem a ver com razões domésticas dos Estados Unidos, a maioria delas são produtos que os americanos não têm como produzir rapidamente. A ideia geral das tarifas para o presidente Trump é fazer com que você atraia para os Estados Unidos atividades produtivas que eles perderam ao longo do tempo”, complementa o professor.
Embora as tarifas tenham como ideia aumentar a capacidade produtiva, os EUA continuam sendo a segunda maior potência industrial do mundo. Para que os americanos realizassem a produção nos setores isentos das novas taxas, Guimarães explica que haveria a necessidade de um longo processo de adaptação. O professor ainda acrescenta que “os americanos não conseguem rapidamente mudar a sua atividade produtiva, então eles vão sopesar, eles vão avaliar cada um dos setores lentamente para ver as suas adaptações. E, agora, o que resta ao Brasil é continuar essa negociação para tentar diminuir as tarifas”.
Taxas como coerção
Para o professor, a estratégia de taxação global da administração Trump é uma forma de coerção para que os países façam um “pêndulo de política externa de volta para o Ocidente”. “Para mim, é claro que na administração americana a proximidade do Brasil com a China, o fato de o Brasil ser o único país-membro do Brics pleno da América Latina, deste lado do mundo, é inaceitável para os Estados Unidos”. Guimarães ainda explica que a taxação aplicada à África do Sul tem uma função similar à do Brasil, pressionando o País a se voltar aos Estados Unidos, utilizando instrumentos legais em ações de caráter disciplinar.
“Eles poderiam fazer propostas mais positivas de cooperação para tentar atrair o Brasil no setor econômico, investimentos econômicos, investimentos em infraestrutura. Mas os americanos têm um problema estrutural, eles não têm mais o que oferecer. Todas as empresas americanas já estão no Brasil. O governo americano não tem mais plano Marshall, que é o sistema público de financiamento.”
Superávit americano
O professor explica que a balança comercial brasileira é deficitária e a balança de serviços com os Estados Unidos é ultradeficitária: “O Brasil tem um dos maiores déficits comerciais do mundo com os Estados Unidos. De acordo com o governo brasileiro, nos últimos dez anos, são US$ 450 bilhões de superávit para os Estados Unidos”. Segundo Guimarães, por isso o Brasil não se encaixa no argumento de base legal que os americanos têm usado para justificar a imposição de tarifas a muitos países.
Apesar disso, Guimarães reforça que Trump vai contestar essas decisões judiciais e levar o debate à Suprema Corte: “A tática do Trump é – como se diz em inglês, flooded field (encharcar o campo) – atacar em 150 frentes ao mesmo tempo. O Judiciário derruba duas ou três e você ganha em 130, 140”. O professor comenta que as disputas entre o Congresso e o Executivo sobre a lei de comércio são históricas. Apesar disso, a possibilidade de uma reversão imediata é improvável. Ele lembra que o Partido Republicano ainda é maioria, uma contestação efetiva exigiria dissidência interna e articulações com o Partido Democrata. Assim, as esperanças se encontram nas eleições legislativas de meio de mandato – previstas para 2026 –, que podem alterar a correlação de forças no Congresso e abrir espaço para enfrentamentos mais incisivos. “O principal campo de contestação das tarifas hoje não está no Congresso americano, está no Judiciário dos Estados Unidos. Esse é o caminho mais rápido que o Brasil e muitos outros países vão ter que trabalhar para conseguir derrubar essas tarifas”, aponta.
Brasil injustiçado
Guimarães vai além e aponta que o Brasil foi um dos alvos mais injustiçados, não por razões econômicas, mas por critérios estritamente políticos: “A ordem executiva publicada ontem é totalmente política, não tem nenhuma razoabilidade econômica comercial para justificar as tarifas, ao contrário das outras ordens executivas emitidas para vários outros países”.
O professor ainda ressalta que nessa relação o que mais pesa são questões relacionadas à regulação das big techs e a insatisfação com as decisões da Suprema Corte. “Como nos Estados Unidos existe a noção de uma liberdade de expressão ultralivre, em que você pode ser racista, você pode falar abertamente um preconceito, porque você está, em teoria, resguardado pela Primeira Emenda, de que você tem liberdade de expressão. Essa é uma visão que no Brasil não cabe. Nós temos liberdade de expressão, mas a liberdade de expressão não pode ofender as pessoas dessa maneira. Então também tem isso, um interesse dos americanos de fazer com que a Primeira Emenda deles também valha dentro do Brasil, e isso é contrário à nossa lógica política.”
Brics como alternativa
Em contrapartida, há a China com centenas de possíveis novos investimentos no Brasil. Guimarães destaca o avanço do mercado chinês no cenário brasileiro: da presença crescente no setor automotivo — com a instalação de fábricas como a da BYD na Bahia — até a transformação simbólica de regiões como a Faria Lima, em São Paulo, que hoje abriga dezenas de empresas e comércios chineses. O professor aponta que o Brasil já concentra 85% de todos os carros elétricos da América Latina, e são automóveis chineses. “Isso para os americanos é inaceitável. Então eles estão usando a coerção para nos disciplinar”, finaliza.
O professor Paulo Feldmann explica que entre os produtos mais afetados pelas novas medidas estão o café, as frutas e a carne bovina, todos com tarifa de 50%. No caso do café, especialistas preveem que Vietnã e Colômbia devem ocupar o espaço brasileiro no mercado americano. Já a carne bovina, mesmo com demanda global aquecida, sofrerá forte impacto, já que os Estados Unidos são o segundo maior importador do produto brasileiro. A medida americana atinge cerca de US$ 14 bilhões em exportações brasileiras, segundo estimativas do setor privado.
Alianças regionais
A persistência dessas tarifas reflete a estratégia protecionista de Trump, que prioriza o mercado interno americano mesmo às custas da fragmentação das cadeias globais. Outro fator que facilita a manutenção das taxas é a falta de uma resposta coordenada da América Latina. O México, por exemplo, já sofreu sanções anteriores sem que houvesse uma reação conjunta da região.
Diante desse cenário, Feldmann defende que o Brasil deve adotar uma estratégia múltipla, focando tanto no mercado interno quanto no fortalecimento de alianças regionais. “Na época, chegou à conclusão que o seu mercado interno era muito importante. Exatamente o que o Trump está fazendo agora. Definiu que acima de tudo o mercado americano é muito importante, e quem quiser entrar aqui vai ter que pagar uma supertarifa, 50% ou 30%”, explica o professor.
Mercado interno
O especialista lembra que, entre os anos 1930 e 1970, o Brasil cresceu a taxas de 8% ao ano justamente por focar no mercado interno, mas comenta as consequências que podem ocorrer se se fechar nesse mercado: “Não teremos, talvez, produtos tão competitivos como aconteceu naquele período. Os nossos computadores não eram os melhores do mundo, mas coisas muito boas aconteceram, como, por exemplo, a Embraer. Ela cresceu graças à reserva de mercado. A Embrapa surgiu como decorrência e gerou uma série de tecnologias que permitiram que o Brasil se tornasse o maior país agrícola do mundo”, acrescenta.
Para enfrentar esse desafio, o governo brasileiro precisa agir em várias frentes. Deve acelerar a conclusão de acordos comerciais com China e União Europeia, mesmo que em condições menos vantajosas. Outra medida urgente seria a criação de subsídios temporários para setores estratégicos como agroindústria e manufatura. Por fim, é fundamental explorar melhor o potencial do mercado interno. “Somos 210 milhões de consumidores. É um ativo subutilizado”, conclui Feldmann, destacando que poucos países no mundo possuem um mercado consumidor desse tamanho.